segunda-feira, 23 de maio de 2011

A quem se machuca


Inimigos são duas pessoas pertinho uma da outra. Só que de costas.

Há duas situações inimigas dentro do amor. Pertinho e uma de costas para a outra. Ambas ameaçam dar certo e não dar certo.

Quando se ama, tanto se teme enfrentar a possibilidade de dar certo, cheia de prisões e tentáculos, como o risco de não dar certo e ficar rompida uma harmonia que  poderia ter funcionado.

Ambas as situações convivem em quem ama. Porque "viver bem" não é dar certo. Dar certo é ser capaz de prosseguir apesar do desacerto.

"Viver mal" não é necessariamente dar errado. Dar errado é não poder prosseguir.

Composto também de partes inimigas, o amor se enriquece dos cansaços incapazes da destruição. Só vive do imperfeito de cada confronto. Só é quando vive ameaçado de deixar de ser. Caso contrário, não seria; simplemente deixaria de ser.

Os inimigos são duas pessoas pertinho uma da outra, mas de costas, porque, se  elas se virarem, encontrar-se-ão. E é isso o que temem. São mais unidos, talvez, que amigos, um de frente para o outro, mas a metros ou quilômetros de distância, e só por isso se entendem.

O  medo de amar é o medo de estar perto demais (ainda que de costas), o que de certa forma escraviza. O engano de amor é estar longe, mas de frente, o que de certa forma atenua.

A coragem de amar equivale à coragem de ser: é fazer dois inimigos, de costas um para o outro, virarem-se de frente para sentir o perfume, o olho, o medo, a força, a ternura, muita raiva e muito carinho e aceitar tudo, por isso amar.

A falsidade do amor é permanecer de frente como amigos: pura e simplesmente se aceitando. Sem contradita. Sem a oposição capaz de ser vencida pela permanência do sentimento, a despeito do eu de cada um.

O medo de quem ama é o medo da relação profunda, porque nela está a entrega que não rompe, apesar das  tragédias da superfície. E a superfície só faz a tragédia, para impedir que o eu contemple de  frente a relação profunda. Esta contém o que não se destrói, apesar das diferenças.

Na relação profunda está o desamparo e a necessidade tão pura que nunca pôde vir à tona. Na relação superficial está a fantasia, o eu idealizado, a armadura enfeitada de cada um.

Quem se relacionar ao nível da armadura será  feliz no começo, na fase hipnótica do amor. Quem preferir o nível profundo de relacionamento talvez seja até infeliz. Mas amará. A infelicidade  pode  fazer virar as costas para o inimigo, separar-se dele. Mesmo assim não será maior que o amor advinhado e sentido, se a relação é profunda.

Não te vires de frente para o inimigo! Podes amá-lo. Ele vai advinhar, e tu também, o amor está na peleja de quem ama. Não fiques tão de frente, mas tão longe de quem gostas. No que chegares perto, talvez detestes e sejas detestado.

Amar é estar de costas. Gostar é estar de frente. Um ultrapassa a inimizade que vive junta. Outro vive a amizade fácil, mas que se se aproximar pode não ser amor. Por isso era tão fácil sentir!

Amar é apesar. É através. É a despeito, mas é com. Amar, às vezes, é contra, mas perto e fundo. Mesmo de  costas. É malgrado. É com ferida e cicatriz, mas íntegro, verdadeiro e leal.

Amar fundo é  ter medo de virar de  frente. Porque  aí pode  surgir, cristalina, a possibilidade de dar certo. É a entrega. Que é, no fundo, o que mais teme quem ama.

Artur da Távola

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Claudia Mei
É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Clarice Lispector
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