terça-feira, 16 de agosto de 2011

A pipa e a flor



Fiquei triste vendo aquela pipa enroscada no galho da árvore. Rasgada, ela girava e girava, ao vento, como se quisesse escapulir. Mas não adiantava. Você já viu aqueles bichinhos de asas, quando eles caem em teias de aranha? Era daquele jeito.

Tive dó. Pipa não foi feita para acabar assim. Pipa foi feita para voar. E é tão bonito quando a gente as vê, lá no alto.

Eu sempre quis ser uma pipa. Bem leve, sem levar nas costas nada que pese (o que é pesado puxa a gente para baixo...), papel de seda, taquara fina que enverga, mas não quebra, linha forte, um pouquinho de cola e, pronto ! Lá está a pipa, pronta pra voar.

As cores e as formas (que são tantas!) a gente escolhe aquelas que o coração está pedindo. Pipa, pra ser boa, tem que se parecer com os nossos desejos (e eu penso que as pessoas também, para serem boas, têm de ter uma pipa solta dentro delas).

Não é preciso vento forte. Uma brisa mansinha deve levá-la até lá em cima, perto das nuvens. É por isso que elas têm de ser bem leves. O vento chega, as folhas das árvores tremem, e lá vão elas subindo, pra dentro do vazio do céu.

Só que tem uma coisa gozada. Pipa, pra subir, tem de estar amarrada na ponta de uma linha. E a outra ponta é uma mão que segura. É assim que a pipa conversa, através da linha. A mão puxa a linha e sente a linha firme, puxando pra cima, querendo ir.

E a pipa dizendo: "Me deixa ir um pouco mais..."

Mas se a linha responde frouxa, é a pipa dizendo que está sem companheiro, o vento foi embora, e ela quer voltar pra casa.

Quando eu era menino, e me lembro, havia um homem.

Justo quando as pipas estavam lá em cima batizadas, carretilha sem mais linha para dar, ele vinha e comprava as pipas dos meninos. Pagava o preço justo. Só que o gosto dele era cortar a linha. Quem nunca brincou com elas vai pensar que, com a linha cortada, vão subir cada vez mais alto, nas costas do vento, sem nada que as segure.

Mas não é assim. Quando a linha arrebenta, começam a cair. E vão caindo sempre, cada vez mais longe, tristes, abanando as cabeças...

O menino que a fez estava alegre, e imaginou que a pipa também estivesse. Por isto fez nela uma cara risonha, colando tiras de papel de seda vermelho: dois olhos, um nariz, uma boca.

Ô, pipa boa: levinha, travessa, subia alto. Gostava de brincar com o perigo, vivia zombando dos fios e dos galhos das árvores.

"Vocês não me pegam, vocês não me pegam..."

E, enquanto ria, sacudia o rabo em desafio. Chegou até a rasgar o papel, num galho que foi mais rápido, mas o menino consertou, colando um remendo da mesma cor.

Amigos, tinha aos montões. E os seus olhos iam agradando à todos eles, sempre com aquela risada gostosa, contando casos.

Mas aconteceu um dia, ela estava começando a subir, correndo de um lado para o outro no vento, olhar para baixo e viu, lá num quintal, uma flor. Ela já havia visto muitas flores. Só que desta vez os seus olhos e os olhos da flor se encontraram, e ela sentiu uma coisa estranha. Não, não era a beleza da flor. Já vira outras, mais belas. Eram os olhos.

Quem não entende pensa que todos os olhos são parecidos, só diferentes na cor. Mas não é assim. Há olhos que agradam, acariciam a gente como se fossem mãos.

Outros dão medo, ameaçam, acusam, e quando a gente se percebe encarados por eles, dá um arrepio ruim por dentro. Tem também os olhos que colam, hipnotizam, enfeitiçam.

A pipa ficou enfeitiçada. Não mais queria ser pipa. Só queria uma coisa: fazer o que a florzinha quisesse. Ah! Ela era tão maravilhosa. Que felicidade se pudesse ficar de mãos dadas com ela, pelo resto dos seus dias.

E assim, resolveu mudar de dono. Aproveitando-se de um vento forte, deu um puxão, arrebentou a linha e foi cair devagarinho, ao lado da flor.

E deu a sua linha para ela segurar. Ela segurou forte.

Agora, sua linha nas mãos da flor, a pipa pensou que voar seria muito mais gostoso. Lá de cima ela conversaria com ela, e ao voltar lhe contaria estórias que ela pudesse dormir.

E ela pediu: "Florzinha, me solta..."

E a florzinha soltou.

A pipa subiu bem alto e seu coração bateu feliz. Quando se está lá no alto é bom saber que há alguém esperando, lá em baixo.

Mas a flor, aqui debaixo, percebeu que estava ficando triste. Não, não é que estivesse triste. Estava ficando com raiva. Que injustiça que a pipa pudesse voar tão alto e ela tivesse de ficar plantada no chão. E teve inveja da pipa.

Tinha raiva quando via as pipas lá em cima, tagarelando entre si. E ela, flor, sozinha deixada de fora.

"Se a pipa me amasse de verdade não poderia estar feliz lá em cima, longe de mim. Ficaria o tempo todo aqui comigo..."

E à inveja juntou-se o ciúme. Inveja é ficar infeliz vendo as coisas bonitas e boas que os outros têm e nós não. Ciúme é a dor que dá quando a gente imagina a felicidade do outro, sem que a gente esteja com ele.

E a flor começou  a ficar malvada.

Ficava emburrada quando a pipa chegava. Exigia explicações de tudo.

E a pipa começou a ficar com medo de ficar feliz, pois sabia que isto faria a flor sofrer.

E a flor foi, aos poucos, encurtando a linha. A pipa não mais podia voar. Via, ali de baixinho, de sobre o quintal (esta era toda a distância que a flor lhe permitia voar) as outras pipas lá em cima.

E sua boca foi ficando triste. E percebeu que já não gostava tanto da flor, como no início.

Esta estória não terminou. Está acontecendo agora, em algum lugar. E há 3 jeitos de escrever o seu fim. Você é que vai escolher.

1. A pipa ficou tão triste que resolveu nunca mais voar. "Não vou te incomodar com meus risos, flor, mas também não vou te dar a alegria de meu sorriso."

E assim ficou amarrada à flor, mas mais longe dela do que nunca, porque o seu coração estava em sonhos de vôos e nos risos de outros tempos.

2. A flor, na verdade, era uma borboleta que uma bruxa má havia enfeitiçado e condenado a ficar fincada no chão. O feitiço só se quebraria no dia em que ela fosse capaz de dizer não à sua inveja e ao seu ciúme e se sentisse feliz com a felicidade dos outros.

E, aconteceu que, um dia, vendo a pipa voar, ela se esqueceu de si mesma por um instante e ficou feliz ao ver a felicidade da pipa. Quando isto aconteceu, o feitiço se quebrou e ela voou, agora como borboleta, para o alto e os dois, pipa e borboleta puderam brincar juntos.

3.   A pipa percebeu que havia mais alegria na liberdade de antigamente que nos braços da flor. Porque aqueles eram braços que amarravam. E assim, num dia de grande ventania, e se valendo de uma distração da flor, arrebentou a linha e foi em busca de uma outra mão que ficasse feliz vendo-a voar nas alturas.

Rubem Alves.

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É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Clarice Lispector
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