terça-feira, 27 de julho de 2010

Ver o outro dormir

Ver o outro dormir é negócio de muita responsabilidade. Mais que ver as águas de um rio represado gerando uma usina de sonhos, é ver uma semente na noite pedindo um guardião.

 Pode ser banal, mas é isto: amar é ser o guardião do sonho alheio. Os surrealistas diziam: o poeta enquanto dorme trabalha. Pois os amantes enquanto dormem, se amam. Se amam inconscientemente, quando seus desejos enlaçam raízes e seivas.

O pé de um toca o pé do outro, a mão espalmada corre sobre o lençol e toca o corpo alheio e, dormindo, se abraçam animados. Quando isso ocorre, pode ter vários significados. Talvez um tenha lançado um apelo silencioso ao outro: "Ajude-me a atravessar esse sonho", ou: "Venha, sonhe esse sonho comigo, é bonito demais".

E o outro, às vezes, sem se mexer, parte em seu socorro. É que certos sonhos, sobretudo os de quem ama, não cabe num só corpo. Transbordam os poros da noite e pedem cumplicidade.

E se há um pesadelo, aí um se agarra ao tronco do outro na crispação do instante, e o corpo do parceiro é bóia na escuridão. Por isto, no ritual do casamento, quando o sacerdote indaga se os que se amam sabem que terão que se socorrer na saúde e na doença, na opulência e na miséria etc... deveria se inserir um tópico a mais e advertir: ... amar é ser cúmplice do sonho alheio.

Passar a metade da vida dormindo ao lado do outro. E há quem passe uma tarde, uma noite ou uma temporada ao lado de um corpo e sabe seus sonhos para sempre.

Engana-se quem escuta o silêncio no quarto dos que amam. Estranhos rumores percorrem o sonho alheio. Não é o rugir do tigre pelas brenhas. Não é o bater das ondas na enseada. Nem os pássaros perfurando a madrugada. São os sonhos dos amantes em plena elaboração.

E se numa noite dessas o vento da insônia de novo soprar em suas frestas, olhe pela janela os muitos apartamentos onde pulsam dormindo os amorosos.

Quando se compra um apartamento novo, nas alturas, alguns compram lunetas e ficam vasculhando a vida alheia. Mas para ouvir o ruído dos sonhos basta abrir os ouvidos na escuridão. Os sonhos pulsam na madrugada.

Era uma vez um chinês que toda vez que sonhava com sua amada acordava perfumado. Deve ser por isso que, ainda hoje, o quarto dos amantes amanhece com um perfume de almíscar, lavanda e alfazema. E é comum achar troféus dos sonhos ao pé da cama de quem ama.

Quando se abre a pálpebra do dia, aí pode-se ver um unicórnio de ouro e uma coroa de rubis.  À noite os sonhos dos amantes se cristalizam e de dia se liquefazem em beijos e lágrimas.

Quem ama diz boa-noite como quem abre/fecha a porta de um jardim. Não apenas como quem viaja, mas como quem vai para a colheita.

Quando se ama, acontece de um habitar o sonho do outro, e fecundá-lo.

Afonso Romano de Sant'Anna

1 comentários:

Joemir Rosa disse...

Lindo texto! De uma sensibilidade que só os que amam podem entender! Os que não amam dirão que não entenderam nada, ou que é uma tremenda viagem ...
Acho que eles têm razão: é uma tremenda viagem! Viagem para dentro da alma e do coração!
Mas essa viagem só os amantes têm os mapas, decodificam os símbolos e sabem cada caminho!

Beijos e ... parabéns! Por tudo! Vc sabe ....

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Claudia Mei
É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Clarice Lispector
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